Tuesday, July 9, 2019

"Quarto Sensorial", por Eduardo Von Peters

Quarto Sensorial

Por Eduardo Von Peters

“Entender” é um verbo inútil, e eu já venho batendo nessa tecla há algum tempo – batendo, batendo... Batendo... Batendo... Isso até me lembra que a banda Quarto Sensorial não tem um rosto. Pois digo que entender é inútil: quando formos parar para escutar o rosto livre, ouvir cada uma das linhas desse rosto, que se esconde na nota arpejada de um Vôo, estaremos, sem dúvida, nos confrontando com um espécime de arte invisível, que se desdobra e se aniquila – que se multiplica e se desfaz a cada novidade encontrada dentro de si mesma, como um surto de autoconhecimento em tempestade. Uma arte vigorosa como o caos. Não um caos desorganizado, que não se enxerga,... Mas aquela massa disforme a qual a inspiração, algumas vezes, tenta assumir e dar a forma de um milagre. Uma massa disforme como a da água, que é uma massa, é disforme, mas deságua em bruma pela manhã, em neve pela tarde, solidifica-se ou se funde outra vez em rio.

Rio... A banda de música instrumental deságua com a violência tranqüila de um rio. “Travessia” é uma palavra importante, porque a música que brota feito fonte, que cai com sua cabeça de cachoeira, está sempre atravessando a si mesma. Sempre buscando um contraponto; colocando luz onde ainda é trevas em sua sonoridade. Até parece bíblico. “Trevas” e “luz”... Mas a coisa é mais sagrada que isso: é música pura e simplesmente.

Quarto Sensorial, outrora, foi um lugar onde todos os sentidos se convertem em música. Se embaralharmos as letras de “Quarto Sensorial”, encontraremos: Instalar Que Soro, Ralar Toque Nisso, Esquinar Rato Sol, Treinar Qual Osso, Esquiar Santo Rol, Transe Soar Quilo, Quarto Rosa Senil, Santa Que Rir Solo e etc. Esses anagramas serão divertidos para provar um ponto: o de que a banda está desacomodando suas letras, seus órgãos gráficos internos...

Mas nada disso fará tanto sentido. O que faz sentido é que a Quarto Sensorial pode nem existir, e ser, de fato, um lugar dentro de nossa cabeça onde os sentidos se convertem em música, ou em qualquer outra coisa parecida. Dessa forma, assumiríamos um papel mais clerical para o otorrinolaringologista.

Ninguém nunca se deu conta disso antes, e eu digo que ninguém nunca se deu conta antes do misticismo desse especialista: o cara que remedia os aparelhos da linguagem, mano. E, na verdade, se ele utilizar um cotoscópio e verificar o que há dentro da caverna das tuas orelhas, talvez encontre, com a satisfação de um criador de cavalos ou de um artista marcial tibetano, a flor inchada de uma crisálida, rompendo seus tecidos de silêncio, deixando umas patinhas douradas aparecerem e revelar a preciosidade que respira ali dentro.

A+B+C+D+E... Até parece a matemática progressiva da língua; qualquer alfabeto entende isso. Um punhado de músicas lançadas como de um colar de pérolas rompido. A lua, que parece uma maçã, orbita em torno da mordida fatal no proibido. Ouça e valse nas margens do que não foi ainda narrado a olhos nus.

A Quarto Sensorial é assim: um asfalto celestial cheio de tampas. Alta pressão atrás desse desfile mascarado de nuvens. As coisas se rompem com freqüência: os limites, os rios, as fórmulas. O baixo pluvial de um Bruno Vargas, a bateria platina de um Martin Estevez, a guitarra espirituosa de um Carlos Ferreira, um baixo de um Gorra Va Bnus, uma Bata Rei de um Sementar Vez Ti... Uma guitarra de um Carlos Era Ferir e tudo isso sempre poderá ser, com o benefício da dúvida, o tesouro que há escondido dentro do ouvido de cada um de nós. Formada em Porto Alegre, onde os cais são solitários e a temperatura pode ser mais alta que a de um carburador de metáforas, a Quarto Sensorial faz da música um mergulho no abismo da linguagem, sempre investigando a possibilidade de nunca ter participado de abismo nenhum e ser a beleza inerte do que desassossega.
idolaqq

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